publicado dia 08/03/2018

Como a desigualdade de gênero se manifesta na educação das meninas

Reportagem:

Cerca de 16 milhões de meninas nunca terão chance de ir à escola. Em situações de vulnerabilidade, elas são as primeiras a ficarem sem educação e representam, hoje, dois terços da população analfabeta do mundo.

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Mesmo quando matriculadas, a discrepância de direitos em relação a seus pares masculinos permanece. Podem estar nas salas de aula, mas a invisibilidade, opressões e violências recaem, sobretudo, sobre elas. Tudo isso pelo simples fato de terem nascido meninas.

Mesmo nas salas de aula, a invisibilidade, opressões e violências recaem, sobretudo, sobre elas.

Não à toa diversas organizações sociais e movimentos internacionais têm direcionado esforços, nos últimos anos, para a inclusão das meninas nos processos de escolarização. Um exemplo é o Girl Rising, que defende que essa é uma maneira eficaz de acabar com ciclos perversos como o da pobreza.

A ONU concorda, tanto que seu Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) número 5 estabelece metas de curto, médio e longo prazo para a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e meninas.

No Brasil, embora tenha sido alcançada a paridade de gênero nas matrículas em praticamente todas as etapas da Educação Básica e, no Ensino Superior, a relação das mulheres seja de 1.4 para cada homem, os desafios ainda são muitos.

Na prática, o acesso ainda padece para reverberar em iguais oportunidades dentro e fora dos muros da escola. “A entrada das jovens mulheres no mundo do emprego é muito diferente daquela vivida pelos jovens homens, inclusive, no que diz respeito à representatividade nas diferentes carreiras”, aponta Viviana Santiago, gerente de Gênero e Incidência Política da Plan International Brasil.

Além disso, entre os jovens “nem-nem”, isto é, que nem trabalham nem estudam o índice de mulheres representa quase o dobro do dos homens. “Os papéis tradicionais de gênero ainda colocam as meninas para desempenhar com exclusividade os trabalhos domésticos, o que acaba levando a uma frequência irregular ou à evasão da escola. Entre os ‘nem-nem’, temos uma porcentagem grande de mães adolescentes ou jovens casadas e vale ainda ressaltar a influência do gênero quando olhamos para o trabalho infantil”, alerta Viviana.

Inclusão das meninas na educação

Segundo a Unesco, cerca de 16 milhões de meninas nunca terão chance de ir à escola.

Crédito: Reprodução Facebook/Girl Rising

Ser menina no Brasil

Para além dos desafios, alunas de escolas públicas e particulares, do campo e da cidade, possuem algo em comum: gostam de ir para a escola e estão satisfeitas em serem meninas. É o que mostra a pesquisa Por Ser Menina, da Plan International Brasil (2014), que reúne as percepções de meninas de 6 a 14 anos sobre aspectos que facilitam e/ou impedem o desenvolvimento de suas habilidades e a garantia de seus direitos em âmbitos como escola e família.

Para além dos desafios, alunas de escolas públicas e particulares, do campo e da cidade, possuem algo em comum: gostam de ir para a escola e estão satisfeitas em serem meninas

“As meninas gostam da escola, sentem-se bem quando estão na escola. Vejo que este direito à educação está bem compreendido, apesar de fazer-se necessário avançar na garantia da permanência com a aprendizagem de todos e todas”, coloca Lêda Gonçalves de Freitas, coautora do livro Ser Menina no Brasil Contemporâneo – Marcações de Gênero em Contexto de Desigualdades, originado a partir do levantamento.

Os depoimentos feitos à pesquisa confirmam esta necessidade. Se a maioria das entrevistadas relataram que “ser menina é ser alegre, feliz, dedicada, honesta, doce, carinhosa, corajosa, atenciosa, bonita, charmosa”, entre outros atributos, um número bem menor destacou que é “ter os próprios direitos”, “ter sua opinião”, “ser respeitada”, “não ser discriminada”, “não ser violada”.

A discriminação de gênero também salta aos olhos quando o escopo é o ambiente familiar. Elas relatam, por exemplo, serem as únicas responsáveis pelos afazeres domésticos e que os meninos podem namorar enquanto as meninas não. “A desigualdade de gênero começa em casa. Ainda há uma hierarquia de gênero que coloca as meninas em condições inferiores em relação aos meninos”, explica Lêda.

Relatos testemunhados por Viviana nas escolas endossam esse quadro, evidenciando a divergência entre os papéis assumidos por meninas e meninos na dinâmica e códigos escolares. “Um exemplo é a recorrente censura à vestimenta das meninas, que revela a insistência no controle de suas sexualidades. Outro foi um episódio que ouvi de um casal que estava se beijando na escola. A decisão da direção foi suspender a menina e nenhuma represália foi feita ao menino”.

A inclusão não se encerra na matrícula

Apesar da potência que as escolas e seus projetos políticos pedagógicos possuem no que diz respeito à promoção da equidade de gênero, nos últimos anos, o que se vê é o desmonte de políticas públicas que versam sobre o tema como a supressão de menções explícitas a termos como gênero e sexualidade de importantes documentos educacionais.

“Como educadora e pesquisadora, vejo muitas escolas públicas atuantes com o objetivo de trabalhar para a não perpetuação da desigualdade de gênero. Infelizmente, o fato dessa temática estar, neste momento, sendo assumida por uma perspectiva religiosa, as ações perdem fôlego”, lamenta Lêda.

Apesar da potência que as escolas possuem no que diz respeito à promoção da equidade de gênero, o que se vê é o desmonte de políticas públicas que versam sobre o tema

Viviana destaca ainda a importância de envolver professores, merendeiros, bibliotecários e todo o corpo docente na discussão. “A escola não é uma alienígena. Está inserida na sociedade, portanto, também é um espaço destas disputas”, lembra.

Para a especialista, continua sendo um desafio ter uma abordagem mais propositiva que consiga, de fato, informar o que significa gênero. “Aí entra a prática pedagógica. Hoje, as pessoas têm um entendimento perverso disseminado pelos movimentos conservadores. Precisamos então associar o estudo de gênero a outras narrativas”.

Por que falar de gênero na escola?

Lêda concorda. Para ela, a escola como instituição que educa não pode fechar os olhos para as questões sociais. “Sabemos que a desigualdade de gênero é um fato em nosso país. Sabemos das desigualdades na divisão das tarefas domésticas, no mundo do trabalho, as hierarquias de gênero, o machismo e o patriarcado. São processos que dificultam o desenvolvimento integral das meninas. Penso que diretores e professores necessitam se educar sobre a temática. Nas escolas percebo que muitos não sabem como tratar a questão, ficam com medo dos pais, medo da mídia”.

Reiterar na escola e em outros espaços de formação cidadã que uma sociedade mais justa perpassa a garantia de educação e desenvolvimento integral das meninas é um dos caminhos, pois, como conclui Viviana, “um mundo melhor para as mulheres é um mundo melhor para todos”.

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